(Parafraseando Augusto de Campos em seu “Balanço da Bossa”,
meu “Chacoalho da Bosta”)
A vida inteira pra curtir Gal, Caetano, Gil e
Bethânia. Que sorte a nossa! Mais sorte a deles. Que bom deve ser a vida dando
certo quando você tem 20 e poucos anos, tudo pela frente, com a energia da
juventude pra fazer o que bem quiser e a vida material bem resolvida. Que
delícia!
Foi assim que esses meninos e muitos outros de sua
geração começaram suas vidas de artista. Uma tamanha constelação de talentos,
no céu do Brasil, ao mesmo tempo, acontecendo no maior e mais vibrante momento
histórico do século 20: os anos 60. Tempo de profundas transformações,
turbulências, revoluções comportamentais, políticas, existenciais, em que a
juventude era colocada no centro de tudo, ao mesmo tempo que colocava tudo,
absolutamente tudo, em xeque.
Essa conjugação de talentos tão variados e diferentes,
e originais, combinados ao frescor de uma época em que não se confiava em
ninguém com mais de trinta anos, colocou a bola da história nos pés da
juventude. Isso gerou um frescor criativo no mundo inigualável, criar com o
vento da história a favor é uma benção na vida de um artista.
E ninguém, no Brasil, aproveitou, usufruiu, gozou, se
esbaldou dessa liberdade como esses quatro meninos. Com muita coragem,
personalidade, liberdade e principalmente: com o talento nato, extraordinário
deles. E o mais incrível de tudo, o tempo passou, a história passou por vários
momentos, inclusive antagônicos a esse período, e eles continuaram com o mesmo
frescor desafiante, intrigante, criativo, sempre vivendo de desafiar o mercado e
assobiar no presente os ventos do futuro, ora contra o vento, ora a favor, os
baianos e a ideia tropicalista de certa maneira continuaram pairando sobre
tudo. Se a Bossa Nova dividiu a história na maneira de tocar, cantar, arranjar,
o tropicalismo dividiu a história na maneira de criar, incorporar, se
apropriar, se libertar, se atualizar o tempo todo. O saudosismo na tropicália é
feito de um passado que não congela o tempo, querendo-o cativo a uma tradição,
ao contrário, leva-o a novos rumos a todo momento, a cada passo da história.
Os baianos parecem que vieram predestinados a isso, lembro
de Caetano falando da revolução cultural que um tal reitor Edgar Santos
promoveu na Universidade Federal da da Bahia, trazendo para ela ícones
internacionais do teatro, da música, da dança, da arquitetura e urbanismo. “ Não
à toa, a universidade, em seus tempos áureos, interagia com a cidade de forma
tão natural.brilhantismo O que se queria afinal? Quem definiu bem foi Glauber
Rocha (1939-1981), um tanto mais à frente desse tempo: a questão era “derrotar a
província na própria província”. Assim, Edgard Santos reuniu um time de
excelência, que poderia contribuir na prática para a tal reinvenção da Bahia,
entre eles os seminais Koellreutter
(1915-2005), Martim Gonçalves (1919-1973), Yanka Rudzka (1916-2008)
e Lina Bo Bardi (1914-1992), que
tocaram, respectivamente, as escolas de Música, de Teatro e Dança da Ufba, e o
Museu de Arte Moderna (MAM-BA).
Outras feras meteram o dedo naquele rico caldo, é
claro, e também deixaram sua marca: Ernst Widmer (1927-1990), Carybé
(1911-1997), Pierre Verger (1902-1996), Mario Cravo Jr., Milton Santos
(1926-2001), Walter da Silveira (1915-1970), Anton Smetak (1913-1984), Clarival
do Prado Valladares (1918-1983) e Vivaldo Costa Lima (1925-2010).
Todos preparando terreno para a geração posterior, que
transformaria para sempre o cenário vigente, composta por Rubem Valentim
(1922-1991), Elsimar Coutinho, Glauber Rocha (1939-1981), Tom Zé, Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Wally Salomão (1943-2003), João Ubaldo Ribeiro, Rogério Duarte
e Capinan. A intenção era clara: educar culturalmente a população. “ (* Doris
Miranda)
Acho que Caetano é muito resultado desse caldo, e da
visão cosmopolita que o reitor Edgar teve, e que até hoje é traço marcante dos
soteropolitanos e da Bahia em geral. Eu sei o que é isso, pois já morei em
várias cidades, sob o pretexto de valorizar o que é do bairro ou da cidade, transformam
esses lugares em sítios trancados culturalmente. Com argumento de “vamos
valorizar quem é daqui”, nada se transforma ou evolui, aí fica lá o mesmo
diretor de teatro, desatualizado, acomodado, fazendo a mesma coisa, ano após
anos, só para dar um exemplo. Isso é o que mais acontece nos interiores do
Brasil, nas secretárias de cultura municipais, até nos botecos musicais em que
sempre trabalhei. Sem ventos vindos de fora, a tendência é a estagnação, a
preguiça, o acomodamento, e o efeito é o contrário do que se pretende, ao invés
de fortalecer a cultura local, o resultado é o enfraquecimento da mesma, em seu
próprio provincianismo no que tem de pior.
Caetano é uma força criativa oriunda desse “o mundo
cabe aqui na minha aldeia”, seu Tejo criativo corre aonde bem quiser na
geografia do planeta. Ele e sua turma usufruíram disso e tiveram uma vida
próspera artisticamente, emocionante, prazerosa.
Sempre que fazia um contraponto dessa geração com a
minha, o resultado era uma profunda depressão, pois ao contrário deles, minha
geração pegou todos os ventos históricos contra. Hoje não me deprimo mais, pego
carona na felicidade deles para continuar criando e ainda me inspiro muito
nesse caldo tropicalista, e olha, sempre me dando ao direito de questionar,
discordar, romper com esse ou aquele ponto de vista.
Ao contrário do séquito que segue Caetano, em que
parece que ficam todos esperando o que ele vai dizer, ou para aonde vai, para
depois se posicionar, coisa chata, deve ser muito chato isso, inclusive para o
próprio, eu me dou ao direito sempre de dissentir.
Eu sou de outra época, vivi outra realidade, a maior
parte da minha geração não conseguiu trazer à luz a sua produção, passei a
década de noventa inteira no perrengue, sem trabalho, vendo os bares elencados
pela “Bunda Music”, então na dava para eu bater palmas para “É o Tchan”, achava
aquilo horrível esteticamente, musicalmente, as roupas, a dança, a ostentação,
tudo. Depois viemos a saber que os caras batiam nas dançarinas, entre outras
barbaridades e sacanagens comerciais que faziam rotineiramente. Não consigo,
diferentemente dos baianos, bater palma para tudo que é popular, só por ser
popular e vir de lugares de poucos recursos e bla e bla e bla, enfim, eu vivo
com poucos recursos, e pago um preço caro por isso. Também, quem gosta de vaca
de presépio é carola de igreja, grandes artistas gostam de ser desafiados, vide
João Gilberto reagindo tão bem ao tropicalismo que era muito, muito, muito
diferente da estética da Bossa.
Sem “choramingação” de leite vencido estamos aqui, sou
parte de um grupo de compositores muito ativos e motivados. A tal linha
evolutiva segue muito bem-obrigado, e se ela sempre vai além, deve-se muito a
esses Doces Bárbaros, a sua alegria, ousadia, coragem, e liberdade criativa. Diferente
deles, não tivemos a vida inteira pra curtir, mas tudo ficou mais divertido, no
sentido criativo, depois deles, a boa sensação de que tudo é possível. Sigamos,
e se o “Balanço da Bossa” não vira mais, a gente chacoalha nossa bosta do jeito
que dá.
E viva Macalé, vi um show dele há poucos anos e está
tudo ali, vivo e atuante, o mesmo frescor dos anos sessenta, em toda a sua
liberdade criativa que não se congela no tempo, ao contrário, o desafia a todo
momento.
Chacoalho da Bosta – Teju Franco 15/10/2023